Farei aqui uma breve exposição da relação entre Winnicott e Klein. Segundo Loparic (1997), frequentemente é atribuído a Winnicott uma posição dentro das linhas do desenvolvimento psicanalítico situando seu lugar histórico por meio de dados institucionais, isto significa, sua posição na Sociedade Britânica de Psicanálise (SBP). Winnicott pertencia- juntamente com Fairbairn (1889-1964), Balint (1896-1970), Bion (1897-1979), dentre outros - ao grupo do meio, ficava então no entre, entre seguidores dos desenvolvimentos que vinham sendo feitos por Klein e entre os freudianos guiados por Anna Freud.
O lugar que ocupava na SBP é insuficiente para uma apreciação correta das ideias do autor, no entanto, é interessante notar com este tipo de registro que Winnicott, ao final de seus escritos, não deve ser figurado como kleiniano. Phillips entende, neste sentido, que o trabalho de Winnicott ao longo de sua carreira, por ter tido uma origem ligada à clínica social e pública ,alinha-se e contribui mais para debates sobre os destinos políticos e científicos de nossa disciplina do que às discussões sobre políticas institucionais exclusivas da psicanálise circunscritas dentro de uma tradição de gabinete e de consultório (como teria ocorrido com kleinianismo) (Phillips, 1988, p. 33). Abram (1996, p. 1), sobre o ambiente da Sociedade Britânica de Psicanálise, ressalta que a atmosfera da sociedade era pesada em decorrência das tensões resultantes a respeito da correta interpretação da obra de Freud e de seu subsequente desenvolvimento.
Então, embora tenha se entusiasmado significativamente com suas contribuições ao conhecê-las e ter reconhecido a influência de Klein em seu trabalho, é oportuno colocar que “Winnicott demorou a explicitar as suas diferenças para com a psicanálise ortodoxa, em particular com a de Melanie Klein” (Loparic, 1997, p. 45).Winnicott chegou à Klein após indicação de James Strachey (1887-1967), analista freudiano (tradutor, inclusive, das obras de Freud para o inglês) com quem esteve em análise por dez anos, entre 1923 e 1933. É em 1923, também, que Winnicott obtém seu primeiro emprego como psiquiatra graças a sua afinidade com a psicologia no tratamento pediátrico dos bebês (idem).
A respeito de seu trajeto pediátrico, Winnicott nota que enquanto seus colegas pediatras ocuparam-se essencialmente dos aspectos físicos, sua atenção gradualmente foi voltando-se para a especialização dos aspectos psicológicos (Winnicott, 1990, p. 21). O quadro que temos aqui nos ajuda a olharmos para um ponto interessante: Winnicott depara-se com a obra de Freud enquanto procura soluções para os problemas encontrados nos bebês e crianças que estava tentando tratar, - tal quadro nos permite pensar em elementos que fornecem condições ao psicanalista para a observação de que as dificuldades encontradas no tratamento (o distúrbio) podem não estar relacionada a chegada ao Édipo ou sua resolução. É esta situação (juntamente com o tratamento de psicóticos ) que o permitiu tecer a hipótese de uma dinâmica antecessora ao tradicional relacionamento a três corpos.
Winnicott estava então em uma posição privilegiada, era neste momento o primeiro pediatra inglês a praticar como um psicanalista, condição que o possibilitou a, de forma singular, realizar comparações entre suas observações clínicas e as narrativas contidas no tratamento psicanalítico (Phillips, 1988, p. 80). Winnicott levou esta percepção a Strachey, que aparentemente sem saber resolver a questão indicou que procurasse por Klein, que na época já era uma conhecida psicanalista de crianças (Loparic, 1997, p. 47). Penso que este trecho do texto de Winnicott, Enfoque pessoal da contribuição kleiniana (1962), (cabe notar que nesta altura já se passaram mais de 20 anos da época em que o autor frequentava o grupo dirigido por Klein), é útil aqui e ilustra as primeiras impressões do autor a respeito deste encontro:
De modo que fui ver e ouvir Melanie Klein, e descobri uma analista que tinha muito que dizer sobre as ansiedades que pertencem ao primeiro ano; me instalei para trabalhar auxiliado por ela. Levei-lhe um caso descrito com grandes pormenores e ela teve a bondade de lê-lo todo. Na base dessa análise pré-kleiniana que realizara baseado na minha própria por Strachey, vim a aprender algo da imensidão de coisas que descobri que ela já sabia. (Winnicott, 1983e, p. 158).
Neste mesmo texto, Winnicott expõe como foi difícil para ele passar da noite para o dia da condição de pioneiro para aluno de uma pioneira. Dificuldade que talvez se reflita no modo como se relacionou com as contribuições da psicanalista, Phillips observa que “Winnicott variou os temas kleinianos de modo à simultaneamente se inscrever neles e se diferenciar.” (Phillips, 1988, p. 13) e, num sentido mais abrangente, e talvez o apontando neste caso como um “mau aluno”, Newman entende que “Poucos percebem o seu poder subversivo: sua declaração de não submissão e não-compaixão” (2003, p.15).
Aqui, uma vez apontada a existência de controvérsias, penso ser importante marcar o fato de que o trabalho de Klein versava de assuntos em comum ao trabalho que o jovem Winnicott estava se deparando e que, neste instante, Winnicott chegara à psicanálise “[...]desconhecendo choques de personalidade entre os vários analistas, e apenas satisfeito por conseguir ajuda suficiente para minhas dificuldades.” (Winnicott, 1983e, p. 157). Daí surge um período de estudos e colaboração mútua que ocorreu entre 1935-40. Ambos estavam percebendo a manifestação de distúrbios psíquicos anteriores ao período edípico descrito por Freud.
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